quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Territórios Protegidos




TERRITÓRIOS PROTEGIDOS E ARENAS DE CONFLITO NAS UNIDADES DE CONSERVAÇÃO DE USO SUSTENTÁVEL EM SERGIPE, BRASIL
Maria do Socorro Ferreira da Silva
GEOPLAN/UFS/CNPq
Rosemeri Melo e Souza
GEOPLAN/UFS/CNPq


As Áreas Protegidas, sobretudo as Unidades de Conservação (UCs), surgiram como estratégia de ordenamento territorial face à perda da biodiversidade ocorrida em escala planetária. Neste cenário, apesar do Brasil ser um país “megadiverso, destacando-se por agrupar entre 15 e 20% da biodiversidade mundial e o maior número de espécies endêmicas do planeta[1], suas Áreas Protegidas também seguem a tendência mundial, marcadas por conflitos territoriais que estão longe de serem resolvidos.

Em 2000 foi criada a Lei Federal N° 9985, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que institui a criação, implantação e gestão das UCs, dividindo-as em dois grupos: o de Proteção Integral, onde é admitido o uso indireto dos recursos naturais, e o de Uso Sustentável com a finalidade de compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos recursos naturais. O primeiro grupo é composto por cinco categorias: Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural e Refúgio de Vidas Silvestres; e o segundo por sete categorias: Área de Proteção Ambiental (APA), Área de Relevante Interesse Ecológica, Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN).

Todavia, muitas UCs já nascem no bojo de conflitos, principalmente o territorial, uma vez que várias categorias são de domínio público, portanto, com obrigatoriedade de desapropriação de terras, tais como: Estação Ecológica, Reserva Biológica e o Parque Nacional; e as categorias Floresta Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna e Reserva de Desenvolvimento Sustentável, inclusas no segundo grupo. As demais categorias o regime de propriedade de terra é de domínio público ou privado, com possibilidade de desapropriação, com exceção da RPPN, cuja propriedade é particular[2].

Outrossim, se desencadeiam conflitos pela apropriação e uso do território, uma vez que são espaços permeados de interesses divergentes, e há categorias com restrição e/ou proibição do uso, no caso das UCs de Proteção Integral, que implicam na expulsão de comunidades locais e tradicionais, em benefício de outros atores sociais, como para a promoção do turismo. 

Neste jogo de poderes, geralmente os mais prejudicados são os que detêm menor poder de barganha, a saber: as comunidades locais e tradicionais (quilombolas, ribeirinhos, comunidades indígenas, caiçaras, pequenos agricultores, assentados, pastorais, populações extrativistas como os pescadores, os caçadores e os coletores) que têm sua base de sustento afetada, e comumente são espoliadas e/ou expropriadas desses territórios que ajudaram a proteger.

Apesar dos avanços na legislação ambiental no contexto nacional, na prática as disputas acirradas pela apropriação e uso dos territórios detentores de recursos naturais refletem a falta da criação e implementação de mecanismos de gestão ambiental para ordenar o uso do território, o que tem contribuído para a fixação de empreendimentos nessas áreas, resultando na perda da biosociodiversidade[3], antes mesmo das UCs serem implementadas. Desse modo, a luz da dicotomia (ex)inclusão territorial, evidencia-se o estabelecimento e as contradições da lei de proteção ambiental brasileira face a apropriação e uso dos territórios legalmente protegidos.

Os conflitos ocorrem quando um ou mais autores tem sua base de (re)produção afetadas. Neste ensaio ancorou-se nos elementos centrais destacados por Little[4], a saber: a) os atores sociais; b) a natureza (econômico, político, ambiental, doméstica); c) os objetos (material ou simbólica, profana ou sagrada, pública ou privada); e, d) as dinâmicas ligadas a evolução do conflitos.

Nesse contexto, os conflitos territoriais em UCs envolvem vários atores sociais, presentes nas arenas de poder pela apropriação e uso dos recursos naturais, tais como: o órgão gestor das UCs (Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade - ICMBio, Secretarias Estaduais, Municipais e proprietários das RPPNs) na perspectiva de amenizar os conflitos; o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), as Secretarias Estaduais e Municipais, na emissão de licenças para o estabelecimento de empreendimentos, no caso das UCs de Uso Sustentável, na fiscalização e aplicação de penas e multas; os representantes dos municípios onde estão inseridas as unidades; o Pelotão da Polícia Ambiental, no patrulhamento ostensivo e na fiscalização dos recursos naturais; os proprietários particulares pelo direito permanecer e usar suas terras; as empresas privadas e públicas, com interesses pelos usos diversos desses territórios; as organizações não-governamentais; o setor imobiliário e turístico na busca de áreas para construção de condomínios de luxo e de resorts; os turistas, visitantes e moradores de veraneio; e as comunidades locais e tradicionais na luta para manter sua base de sustento.

Por esse viés, o discurso que envolve as UCs respalda-se nas potencialidades dos recursos naturais existentes nesses territórios, seja para atender as necessidades socioeconômicas do presente ou como espaços reservados para o uso futuro. Essa acepção reforça assertiva de Santos Silveira[5] que não existe território sem uso.

Neste cenário, de disputa acirrada pelo uso e apropriação dos recursos naturais, este ensaio faz uma abordagem crítica sobre os conflitos territoriais delineados nos espaços das UCs do Brasil, corroborando a tendência desencadeada, com os argumentos pertinentes sobre as unidades de Sergipe, no grupo de Uso Sustentável, que segue tal tendência. Este Estado possui 18 UCs criadas, sendo seis de Proteção Integral e doze de Uso Sustentável, e cinco em processo de criação. Apesar de resguardarem os poucos fragmentos florestais de caatinga e de mata atlântica que restaram ao Estado esses espaços territoriais “legalmente protegidos” ainda não dispõem de mecanismos de gestão ambiental, tais como: plano de gestão e de manejo e zoneamento ecológico econômico, evidenciando fragilidade administrativa ao longo de 20 anos, cujas UCs encontram-se com fortes impactos socioambientais e os conflitos são os mais variados.

Assim, é necessário que medidas urgentes sejam implementadas, pois essas UCs representam ambientes frágeis em função dos usos estabelecidos pelos vários segmentos da sociedade, principalmente pelo avanço do turismo predatório, no caso das áreas litorâneas.

Embora sejam percebidos alguns avanços na administração e no gerenciamento dessas áreas, a Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídrico (SEMARH), órgão responsável pela gestão e implementação dessas unidades, tem se deparado com entraves de ordem política, administrativa e operacional que vêm dificultando a proteção desses remanescentes florestais. Faz-se necessária a adoção de mecanismos de gestão ambiental juntamente com estratégias que incluam as comunidades locais e tradicionais que usam esses territórios como forma de sobrevivência.


Procedimentos Metodológicos

Para compreender os conflitos engendrados nos espaços legalmente protegidos, a partir das UCs de Uso Sustentável em Sergipe, envolvendo atores sociais com interesses diversos pela apropriação e uso dos territórios detentores de recursos naturais, ancorou-se em fontes bibliográficas que discutem a categoria de análise geográfica, enquanto território utilizado destacado por Milton Santos[6]. Essa categoria permite uma leitura do território em sua totalidade, espaço banal, configurando-se enquanto recurso analítico, permeado de caráter político, econômico e socioambiental, havendo necessidade de contemplar os interesses e os atores envolvidos.

Ainda, mediante o uso desigual dos recursos naturais inseridos nos territórios dessas unidades, também foi necessária uma discussão voltada para as Áreas Protegidas, com ênfase para as UCs; para os conflitos ambientais decorrentes da apropriação e uso dos recursos naturais, atrelados a dimensão política, econômica e humana da biodiversidade.

Já a análise documental, respaldou-se nos principais instrumentos legais que norteiam a política de conservação dos recursos naturais, tais como: o Código Florestal[7], o Novo Código Florestal[8], o SNUC[9], além de Leis e Decretos de criação de UCs no contexto local.

No cenário da política de conservação da biodiversidade, algumas notícias divulgadas pelos telejornais e que circulam em sites oficiais, como a alteração do Código Florestal também foi incorporada neste texto, no sentido reforçar a apropriação do espaço, numa visão extremamente mercadológica dos recursos naturais. E na esfera local, foram acompanhadas notícias que evidenciam a especulação imobiliária no território sergipano as quais apontam para o desenvolvimento econômico através de incentivos ao turismo no litoral. Essas análises também foram reforçadas através de diálogos com corretor imobiliário que atua no litoral sul.

Para a identificação e análise dos conflitos territoriais, no âmbito do recorte empírico da pesquisa, vários atores sociais que lidam com a gestão e o gerenciamento dessas UCs foram entrevistados, a saber: superintendente do órgão ambiental[10], coordenadores técnicos das APAs do Morro do Urubu e do Litoral Sul (SEMARH), e o comandante do Pelotão Ambiental da Polícia Militar de Sergipe.

Para subsidiar a análise utilizou-se da técnica de entrevista semi-estruturada. Para os representantes da SEMARH, esse instrumento envolveu questões abertas sobre a legislação ambiental, a gestão e ao gerenciamento das APAs; a infraestrutura; aos recursos financeiros e humanos disponíveis; a questão fundiária, as atividades socioeconômicas e ambientais desenvolvidas; aos recursos naturais; aos conflitos territoriais decorrentes da apropriação e uso dos recursos naturais; a participação das prefeituras municipais, dos proprietários de terra e da população local no gerenciamento; aos desafios e as perspectivas administrativas e operacionais. Já o roteiro destinado ao responsável do Pelotão da Polícia Ambiental contemplou questões sobre os processos administrativos; as infrações ambientais e as respectivas penalidades aplicadas; assim como as dificuldades para a fiscalização e patrulhamento ostensivo dos recursos naturais.

Todavia, as entrevistas realizadas e as observações diretas sistematizadas entre os atores sociais possibilitaram a identificação das arenas de disputa, bem como suas zonas de interação na interface das APAs pesquisadas, pois as relações de poder estabelecidas nesses territórios são desiguais e contraditórias possibilitando analisar a injustiça ambiental com os atores sociais menos privilegiados, as comunidades locais e tradicionais.

Já pesquisa de campo realizada através de visitas in locu aos territórios das APAs, visando analisar: a apropriação e os usos estabelecidos nesses territórios; os recursos naturais; os conflitos territoriais; os impactos socioambientais resultantes do processo de ocupação; e as conseqüências desse processo, tanto para as comunidades locais e tradicionais como para a biodiversidade.

As informações adquiridas foram co-relacionadas e analisadas com base nas fontes bibliográficas de forma que subsidiasse a elaboração deste artigo, sobretudo enriquecido com sugestões visando fornecer caminhos que levem a uma gestão e gerenciamento integrados, sob ótica da biosociodiversidade.


As Unidades de Conservação à luz da categoria de análise geográfica: o território usado

As UCs vêm sendo criadas como estratégia de ordenamento territorial face aos problemas gerados pelo mau uso dos recursos naturais, responsável pela perda da biodiversidade[11]. Embora, criados com o discurso de proteção ambiental, esses espaços têm despertado a atenção de diversos atores sociais, movidos por interesses diversos pelas áreas detentoras de recursos naturais. Assim, para compreender a dimensão humana envolvendo os recursos naturais, buscando analisar os conflitos territoriais decorrentes da criação, implementação e gestão de áreas protegidas, sobretudo a partir das UCs, há necessidade de resgatar o conceito de território à luz da categoria geográfica analisada por Santos; Silveira[12], que consideram o território como uma extensão apropriada e usada, assim como nas literaturas de outros autores que vêm se debruçando na análise dessa categoria, entre eles Claude Raffestin[13], Rogério Haesbaert[14], Marcos Aurélio Saquet[15] e Marcelo José Lopes de Souza[16].

Para Santos; Silveira[17] o território em si mesmo não constitui uma categoria de análise quando se considera o espaço geográfico como tema das ciências sociais, como a própria história. Nesse sentido, “a categoria de análise é o território utilizado”. 

Todavia, para definir qualquer porção territorial, deve-se levar em consideração a interdependência e a inseparabilidade entre a materialidade, que inclui a natureza, e o seu uso, realizado pelo homem, ou seja, o trabalho e a política.

Desse modo, para construir um território, o ator projeta no espaço um trabalho, adaptando as condições em função das necessidades de uma comunidade ou de uma sociedade[18]. Embora não equivalentes, o espaço e o território, jamais poderão ser separados, pois sem espaço não há território[19]. O território e espaços estão ligados, entrelaçados, visto que o território é resultado da dinâmica socioespacial[20].

Por esse viés geográfico, o território é tido como uma porção da superfície da Terra, rica em recursos naturais, que fornece condições de sustento [de sobrevivência] para populações, apropriado e controlado por um grupo de pessoas. E, sobretudo, um espaço onde se estabelece a vida cotidiana das pessoas com as mais diversas experiências e utilidades[21].

Para Santos[22] o território é o lugar onde ocorrem todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, ou seja, onde a história do homem é plenamente realizada a partir das manifestações de sua existência. Nesse sentido, a Geografia se torna uma disciplina com maior capacidade de mostrar os dramas do mundo, da nação, do lugar.

O território é definido primeiramente pelo “poder”, tendo assim, a dimensão política, antes de qualquer outra, como definidora de seu perfil[23]. O exercício de poder, juntamente com o desejo ou a necessidade de defender ou conquistar territórios estão diretamente ligados ao acesso aos recursos naturais, sobretudo utilizando-se posições estratégicas e/ou com a manutenção de modos de vida e do controle sobre símbolos materiais de uma identidade. Nessa ótica, “o poder é uma relação social (...) e o território é a expressão espacial disso”[24].


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