sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Região : La Blache e Ratzel(Artigo Completo)

A REGIÃO E O ESTADO SEGUNDO FRIEDRICH RATZEL E PAUL VIDAL DE LA BLACHE

fonte:UFF
GUY MERCIER
Universidade Laval
Québec, Canadá

Quando se comparava a obra de Paul Vidal de la Blache (1845-1918) com a de Friedrich Ratzel (1844-1904), tinha-se o costume de opor o “possibilismo” do primeiro ao “determinismo” do segundo. Tal oposiçãoprovém, em larga medida, do comentário partidário de Lucien Febvre (1922) que, para melhor condenar os presumidos erros de Ratzel, caricaturou seu pensamento confinando-o a algumas sentenças lapidares revestidas sob o pejorativo título de “determinismo”. Inversamente, para garantir o triunfo de Vidal sobre Ratzel, atribui ao francês a paternidade de uma doutrina — o “possibilismo” — cuja principal qualidade era, justamente, invalidar o falacioso determinismo. Porém, de tanto querer pôr os dois geógrafos um contra o outro, Febvre não fez justiça nem a um e nem a outro. Certamente, ele favoreceu a difusão da geografia vidaliana, reduzindo-a a algumas proposições persuasivas e batizando-a com um nome evocador. Entretanto, o possibilismo conferido a Vidal teve, frequentemente, a desvantagem de substituir a verdadeira obra — como se a eficácia de uma fórmula pudesse dar conta de modo adequado a um pensamento complexo e nuançado, elaborado meticulosa e pacientemente ao longo de numerosos livros e artigos. 
* Esse artigo provém de uma pesquisa feita na Universidade Laval no quadro de
um projeto intitulado “A teoria da relação Natureza-Cultura em Friedrich Ratzel”,
financiada pelo Conselho de Pesquisas em Ciências Humanas do Canadá. Uma primeira
versão desse texto foi objeto de uma comunicação no congresso da União Geográfica
Internacional (UGI) em agosto de 1992 em Washington. O autor agradece a Serge Gagnon
por sua ajuda documental.
N.T.: Publicado originalmente nos Annales de Géographie, n. 583, 1995.
Agradecemos a gentileza do prof. Mercier em autorizar de imediato a tradução entre nós, bem como ao geógrafo Zilmar Luiz dos Reis Agostinho o auxílio nas passagens em inglês. Tradução: Guilherme Ribeiro; Revisão Técnica: Rogério Haesbaert.

Paradoxalmente, Febvre terá contribuído para o renome de Vidal, associando-o a uma doutrina que, por assim dizer, ele jamais enunciou como tal e que nem mesmo pronunciou o nome1. Mais grave ainda, a operação teve como efeito desviar a maior parte dos geógrafos franceses, ingleses e de outros lugares da obra de Ratzel. Uma vez confortavelmente convencido dos erros do professor de Leipzig, não se vê mais sentido em consultar seus escritos. É suficiente saber que o possibilismo vidaliano, conforme a reputação, estava certo diante do determinismo ratzeliano, e a questão se encerrava aí — mesmo se, para isso, fosse necessário esquecer algumas incômodas verdades como, por exemplo, o fato do próprio Vidal reconhecer uma dívida para com seu colega alemão que não podia ser negligenciada. Felizmente, tanto no mundo francófono quanto anglófono, hoje a obra de Ratzel é bem mais conhecida3, sendo possível estabelecer uma comparação mais judiciosa entre suas ideias e as de seu colega francês.
De nossa parte, queremos apontar a forte convergência entre as teorias geográficas desses dois célebres e influentes geógrafos. Nossa intenção é explicar como Vidal de la Blache e Ratzel, a despeito do que possa diferenciá-los, ainda assim compartilham uma visão comum de geografia. Mais particularmente, queremos mostrar que os dois aderem à mesma concepção geral da relação Homem-Natureza e que dela deduzem conceitos de região e de Estado muito similares no plano teórico.
Sobre a exaltação pós-vidaliana do termo “possibilismo”, ver Sanguin (1993:18-19 e 335) e Berdoulay (1981a:41 e 214). Cf. Vidal de la Blache (1898, 1900, 1903:223-224, 1904b, 1911-1912:290, 1921:5). Ver também Broc (1977), Sanguin (1985, 1988, 1993:136) e Claval (1976:23). Berdoulay sublinha que Vidal foi não apenas influenciado por Ratzel, mas que também ficou muito impressionado pela superioridade da ciência alemã em geral — a ponto, mesmo, de alguns acusarem Vidal de praticar uma geografia de empréstimo. Sobre esse último ponto, ver também Bonnefont (1993:81). Graças notadamente aos trabalhos de Smith (1980), Hunter (1983), Bassin  (1984, 1987a, 1987b), Korinman (1983, 1987, 1990), Stehlin (1988), Sanguin (1990) e Mercier (1990, 1992). Igualmente, a tradução francesa de Politische Geographie (1987, 1988a) e a tradução inglesa de Städte und Culturbilder aus Nordamerika (1988b) contribuíram para corrigir inúmeros erros de interpretação hipotecados à obra de Ratzel.
 A esse respeito, esperamos prolongar a reflexão de Anne Buttimer (1971:46), que já identificara o parentesco das ideias dos dois geógrafos — notadamente em relação às concepções de progresso e circulação. Do mesmo modo, ela enfatizou como o “lado sistemático” do pensamento de Vidal confluía com o de Ratzel (1971:58).
Essa démarche, estamos conscientes, pode contrariar as regras de uma epistemologia que preferiria que fosse estabelecido prioritariamente em que e porquê o pensamento de Vidal de la Blache se distingue do de
Ratzel5. De fato, hoje é frequente conceber a história de uma disciplina como uma sucessão de rupturas mais ou menos marcadas. É mister admitir que esse ponto de vista, acentuando o que distingue um autor ou uma corrente de pensamento, confere à análise um poderoso e útil meio de categorização. Todavia, o exercício corre o risco de aberração se, como sublinha Claval, a pesquisa sobre a distinção não vem associada a uma análise igualmente necessária da continuidade, podendo unir eventos da história do pensamento científico que, sob um determinado ângulo, aparecem distintos6. Bem recentemente, Montigny também se pôs em guarda contra os abusos de uma leitura exclusivamente disjuntiva da história das ideias. A esse propósito, ele escreve: Tal como tem sido frequentemente praticada hoje, a história
das Ciências Sociais consiste seguidamente na lembrança dos velhos debates teóricos e na evocação das grandes querelas doutrinais do passado. Sem negar o interesse desses trabalhos, parece-nos necessário ultrapassar essa maneira de escrever a história. Há outro modo de contribuir eficazmente para a história dessas disciplinas, que consiste em saber como e em quais condições elas puderam responder a certas questões comuns (Montigny, 1992:35-36).
Sim, pois o que importa é não negligenciar o que, para além de suas
respectivas especificidades, congrega os pensamentos. Pois não é proibido
supor que algumas dentre elas possam formular uma resposta comum a
uma única questão (cf. Godlewska, 1993:15-17).
Assim justificada, a pesquisa da continuidade entre o pensamento de
Vidal de la Blache e o de Ratzel deve, contudo, evitar a cilada da ilusão
unanimista. Livingstone tem razão ao criticar uma historiografia subjugada
pela imagem de uma geografia unitária e eterna. Sob a égide de uma tal
imagem, o comentarista é tentado a reconstituir, a partir de uma seleção
5 . Inspirada tanto em Bachelard (1986) quanto em Kuhn (1970), Claval
(1981:229) explica como a epistemologia contemporânea concede mais importância às
descontinuidades que pontuam a história das ciências do que à continuidade de sua
progressão. Ver também Stoddart (1981), Buttimer (1981) e Granö (1981).
6 . Claval (1981:229): “Além das descontinuidades, não devemos nos perguntar
sobre permanências mais profundas ou sobre direções que — a despeito de todas as
mudanças — mantém o mesmo rumo sobre questões semelhantes?”
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apropriada de fatos históricos, a verossimilhança de uma unidade mais
imaginária que real7. Para se desfazer de uma história da Geografia
enviesada por construções a posteriori, é preciso aceitar compreender que
todo pensamento científico adquire uma identidade própria porque ele é o
produto específico de uma época, ambiente social e ator particulares.
Resultado de uma história que não é senão a sua, cada pensamento
geográfico, único por definição, permanece irredutível a todos os outros.
De onde a pertinência de uma história da Geografia capaz de estudar em
que as ideias são tributárias do contexto que as originou8.
Se, inegavelmente, o contexto condiciona a obra, ele não explica
todo seu significado. Enquanto entidade discursiva autônoma, a obra
possui características próprias que lhe dão coesão e especificidade. Tais
características, ainda que possam refletir o contexto, advêm diretamente da
própria estrutura da obra. Essa estrutura é, por sua vez, estilística e lógica.
Recentemente, a vertente estilística — com que pouco nos preocupamos
até aqui — foi objeto de uma proposição metodológica muito interessante
por parte de Berdoulay (1988a, 1988b, 1993). Por mais importante que seja
o estilo de uma obra, ela não escapa (sobretudo se pretende ser explicativa,
como no caso da Geografia) às obrigações da coesão lógica interna. Assim,
cada obra geográfica, independente do estilo ou contexto que a engendrou,
elabora um argumento. Partindo de uma problemática, ela sempre apela —
explicitamente ou não — a um quadro teórico e metodológico, a fim de
estabelecer relações lógicas entre os conceitos que foram considerados
significativos à questão estudada.
Nesse artigo, nos dedicamos a analisar a dimensão lógica dos textos
de Vidal e Ratzel. Não pretendemos que uma tal démarche seja mais
importante ou superior àquela que se preocuparia antes com o estilo ou o
contexto9. Dizemos simplesmente que ela é complementar e que
7 . Livingstone (1992a:5): “Em sua paixão por obter coerência conceitual e
continuidade narrativa, historiadores da Geografia têm usado, com frequência, suas
próprias definições sobre o que constitui a geografia como uma lente através da qual
possam examinar e interpretar o passado”.
8 . O ato de batismo do aporte contextual na história da geografia foi consignado
por Berdoulay (1981b). A favor dessa abordagem, vide também as recentes justificativas
de Livingstone (1992a, 1992b).
9 . Segundo Hussy (1993), é imperativo estudar o conteúdo propriamente
conceitual do pensamento de Ratzel, a fim de vencer os últimos pré-julgamentos que
ainda minam sua interpretação.
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permanece indispensável, se desejamos que a epistemologia da Geografia
seja respeitosa ao texto e ao contexto da obra ao mesmo tempo10.
Para satisfazer às exigências da análise da estrutura lógica, o presente
estudo adota uma démarche particularmente atenta ao conteúdo dos textos
vidaliano e ratzeliano11. De um lado, o objetivo é o de evidenciar a
definição de seus conceitos; do outro, precisar como eles foram em seguida
relacionados no interior de um encadeamento lógico, de uma teoria. Como
veremos, esse exercício permitirá demonstrar que, mesmo provenientes de
contextos psicológicos, filosóficos, sociais, culturais e políticos distintos,
Vidal de la Blache e Ratzel situaram a problemática da relação Homem-
Natureza na dianteira de suas reflexões teóricas, bem como a interpretaram
a partir de um postulado utilitarista e evolucionista.
Um postulado comum
Vidal de la Blache é reconhecido por ter inaugurado uma longa
tradição geográfica fundada sob uma concepção da relação Homem-
Natureza que Lucien Febvre qualificou, em 1922, de “possibilista”.
Segundo esse historiador, o possibilismo vidaliano se distinguiria do
pretenso determinismo ratzeliano, que limitaria as relações entre o Homem
e a Natureza a “uma ação mecânica dos fatores naturais sobre uma
humanidade puramente receptiva” (Febvre, 1922:283). Ao contrário,
constatando a influência relativa das condições naturais, o possibilismo
10 . Cf. Berdoulay (1993) e Livingstone (1992a).
11 . No que tange a Vidal de la Blache, nossa análise concentrou-se em seus textos
da maturidade. Segundo Sanguin, que estudou detalhadamente a questão, tal maturidade
afirmou-se em meio ao último decênio do século XIX. De início, em 1894, Vidal expõe
no prefácio do Atlas général “o que será toda sua démarche geográfica até 1918”
(Sanguin, 1993:129), ano de sua morte. Na esteira disso, em 1896 ele publica nos Annales
“seu verdadeiro primeiro artigo: aquele, fundamental, consagrado ao princípio da
Geografia Geral. É lá onde aparece, pela primeira vez, a doutrina vidaliana” (Sanguin,
1993:130). Se a partir desse momento sua doutrina conserva certa estabilidade, nem por
isso ela permanece congelada. Sanguin (1993:327-328) observa que, durante seu período
de maturidade, Vidal continuou a enriquecer sua definição de região e de nação. Essa
evolução, porém, não marca rupturas, mas assume a forma de “variações sobre o mesmo
tema”. Quanto a Ratzel, os textos retidos também pertencem à sua maturidade intelectual
quando, nos quinze últimos anos de vida, desenvolveu plenamente sua teoria geográfica e
evolucionista das sociedades humanas e dos Estados. Cf. Vidal de la Blache (1903:230),
Raffestin (1980:7-12) e Claval (1984:33).
12
teria a vantagem — sempre segundo Febvre — “de mostrar como e em
qual medida o homem é um agente geográfico que trabalha e modifica a
superfície terrestre” (Febvre, 1922:283).
No atual estágio do conhecimento, é impossível sustentar tal leitura
— que, absolutamente, não faz justiça ao pensamento de Ratzel. Na
realidade, como apontaram alguns12, o geógrafo alemão não cede em nada
ao determinismo natural brutal que, no rastro de Febvre, muitos lhe
atribuíram13. Certamente, Ratzel parte do princípio que o Homem,
pertencendo à Terra, não escapa de uma profunda dependência face à
Natureza14. Essa dependência explicaria que os seres humanos, para se
manter e se desenvolver, devem extrair seus meios de existência dessa
Natureza (Ratzel, 1894a, t.1:100-106). Assim, ele defende que toda
sociedade permanece sempre submetida à necessidade de habitação e, mais
ainda, à de alimentação (Ratzel, 1900:3-4; 1898b:142). As necessidades de
subsistência se impõem como forças ligando as sociedades humanas ao
solo, que fornece sustento e abrigo. Tais forças não atuam de outro modo
senão modelando o estabelecimento destas sociedades em função das
condições naturais onde elas evoluem15. Porém, para Ratzel, esse princípio
não significa que somente as condições naturais determinam os modos de
vida e de estabelecimento das sociedades humanas.
Além disso, ele nos diz que é preciso levar em conta a maneira como
os homens exploram a Natureza. De fato, a Natureza não fornece
alimentação, habitação e outras necessidades ou comodidades sem que o
Homem faça esforços. Logo, a forma dessa atividade e mesmo sua eficácia
dependem principalmente do próprio Homem, de sua vontade16 e maior ou
menor capacidade de tirar proveito dos elementos, defende ele. Sim, pois
12 . Ver notadamente Buttimer (1971), Claval (1976, 1984), Hunter (1983) e Bassin
(1984).
13 . Ao contrário, Ratzel (1899a:65) contesta diretamente a idéia de considerar as
condições naturais como única chave de interpretação dos fatos da Geografia humana:
“Foi em vão que o Homem buscou traços característicos deste ou daquele país na
configuração do solo e na composição do ar. A ideia segundo a qual as grandes diferenças
qualitativas da terra seriam determinantes e duráveis é mítica”. Ver também Ratzel
(1902:63), Marinelli (1905:11) e Löwie (1971:110).
14 . A esse propósito, Ratzel escreveu: “A humanidade pertence à terra enquanto
parte dela” (1899a:63). Ver também Ratzel (1894a, t.1:82; 1902:61).
15 . Ver Ratzel (1894a, t.1:9-10 e 100-106; 1899a:64-66 e 84), Raveneau
(1891:334), Marinelli (1905), Brunhes (1904:104) e Bassin (1984:11; 1987a:124).
16 . Sobre a importância do conceito de vontade humana em Ratzel, cf. Hunter
(1983:96).
13
de acordo com Ratzel a relação Homem-Natureza depende do tipo e do
nível de desenvolvimento dos diferentes grupos que povoam a Terra.
O Homem — que, antigamente, dependia dos dons da
natureza — certamente não asseguraria a alimentação, a casa,
a vida, sem esforço. A Natureza, em nenhum caso, não leva
aos seus lábios o alimento, nem põe o abrigo acima de sua
cabeça. Mesmo o australiano que, para ganhar seu pão, não
faz mais que afiar um pau ou fazer dele uma enxada com a
qual desenterra raízes, ou, com seu machado, entalhar as
árvores a fim de nelas colocar os pés durante a escalada. Ou,
ainda, não faz mais que fabricar armas, lanças de peixe,
filetes, linhas para a pesca, armadilhas para os pequenos
animais e fossas para os maiores. Mesmo ele deve dar prova
de uma outra habilidade que propriamente a física. Em seu
caso, um grande número de artifícios denotam um certo
desenvolvimento das faculdades, permitindo a melhor
exploração possível dos dons da naturez 17.
Nessa ordem de fatos, tomando de empréstimo da Antropologia, o
geógrafo alemão distingue os Naturvölker dos Kulturvölker18. Graças ao
progresso, esses últimos teriam adquirido meios técnicos mais eficazes, o
que teria lhes permitido — contrariamente aos Naturvölker — libertar-se
mais das coerções naturais imediatas. Para Ratzel, a fonte do progresso
estaria na faculdade humana de inventar procedimentos para explorar cada
vez mais ampla e eficazmente os diferentes recursos naturais.
Por si mesmos, os dons da natureza não mudam com o tempo
nem em espécie e nem em quantidade, mesmo se o
17 . Ratzel (1894a, t.1:82). Ver também Ratzel (1896a, t.1:87-88).
18 . Ratzel explicita longamente essa distinção fundamental na introdução ao seu
Völkerkunde (1894a). Cf. também Ratzel (1899a:63-68). Pode-se surpreender que Hunter
(1893), ainda que tão minucioso em descortinar o corpus ratzeliano, tenha insistido tão
pouco sobre esse elemento assaz importante do pensamento do autor. De passagem,
notemos que a tradução de Naturvölker e Kulturvölker como “raças naturais” e “raças
culturais” (ou “natural races” e “cultural races”) não é verdadeiramente apropriada, pois o
termo Volk significa povo e não raça. A nuance é relevante pois Ratzel mostra com
insistência que o povo não tem necessariamente uma base racial. Aliás, esse é um dos
pontos fundamentais que distinguem o pensamento ratzeliano das teses raciais da
Geopolitik alemã do entre-guerras. Cf. Ratzel (1900:13) e Bassin (1984:19; 1987b:480).
Ver também a esse respeito o comentário de Vidal (1900:258), que o observa a propósito
da distinção entre raça e povo em Ratzel.
14
abastecimento de bens úteis, que varia de ano em ano, for
imprevisível. Esses dons dependem de certas circunstâncias
externas; são restritos a certas zonas, a altitudes particulares e
a diferentes tipos de solos. Inicialmente, o poder do Homem
sobre esses dons está sujeito a limites estreitos — que podem
ser repelidos pelo desenvolvimento de sua força intelectual e
por sua vontade, embora tais limites jamais possam ser
abolidos completamente. Por outro lado, as forças do Homem
não pertencem senão a ele mesmo; ele pode não somente
utilizá-las, mas também multiplicá-las e reforçá-las sem que
se possa — pelo menos até hoje — colocar-lhe limites19.
Consequentemente, as inovações técnicas seriam difundidas graças à
incessante circulação do gênero humano (Ratzel, 1894a, t. 1:8). Assim, no
pensamento ratzeliano, as trocas e os contatos entre os povos também são
poderosos vetores do progresso20.
O enunciado de Ratzel sobre a concepção geral da relação Homem-
Natureza remonta diretamente à posição vidaliana21. A exemplo de seu
colega alemão, de fato o geógrafo francês diz que o Homem participa da
Natureza: “Velhos hábitos de linguagem nos fazem seguidamente
considerar a natureza e o homem como dois termos opostos, dois
adversários em duelo. Todavia, o homem não é ‘como um império num
império’; ele faz parte da criação vivente, é seu colaborador mais ativo. Ele
não age sobre a natureza senão nela e por ela”22. É por isso que, segundo
Vidal, “é evidente que, por seus órgãos de respiração, nutrição e secreção,
[o Homem] permanece, como os animais, impregnado das influências do
meio ambiente”23. Tal influência estabeleceria uma “ligação” entre as
condições naturais e os fatos geográficos. Entretanto, prossegue ele, “essa
ligação (...) não é uma necessidade absoluta na qual o tempo não saberia
19 . Ratzel (1894a, t.1:25). Ver também Ratzel (1896a, t.1:27).
20 . Cf. Ratzel (1900:1; 1899a:67-85; 1897b:297). É importante sublinhar que os
conceitos de circulação, difusão, contato, troca e comércio impregnam toda a Geografia
de Ratzel — tanto em seus enunciados teóricos quanto em suas análises regionais. Sobre o
difusionismo ratzeliano, cf. notadamente Huckel (1906-1907), Malinowski (1944:17, 32 e
213-215), Löwie (1991:113), Bassin (1984), Claval (1984:34), Raffestin (1988), Sanguin
(1990:592) e Mercier (1990:603-604).
21 . Para uma apresentação geral da concepção da relação Homem-Natureza em
Vidal, cf. Berdoulay (1981a:215-226).
22 . Vidal de la Blache (1903:222). Ver também Vidal de la Blache (1921:7;
1914:558), Berdoulay e Soubeyran (1991), Buttimer (1971:49-51).
23 . Vidal de la Blache (1921:108). Ver também Vidal de la Blache (1911-1912:294).
15
mudar coisa alguma” (Vidal de la Blache, 1904c:343). Pois, consciente de
suas próprias necessidades e dotado de engenhosidade, o Homem seria, ele
próprio, um agente capaz de aproveitar de várias formas as possibilidades
oferecidas pela Natureza:
A natureza fornece ao homem materiais que têm suas
exigências próprias e suas facilidades especiais, mas também
suas incapacidades, que se prestam antes a certas aplicações
do que a outras; nisso ela é sugestiva mas, às vezes, restritiva.
Entretanto, a natureza não age senão como conselheira.
Criando instrumentos, o homem perseguiu uma intenção;
aplicando-se cada vez mais a aperfeiçoar suas armas e
utensílios (...), ele foi guiado por um desejo de apropriação
mais precisa rumo a um objetivo determinado. Nas diferentes
condições ambientais onde se encontrava localizado e tendo
inicialmente que assegurar sua existência, ele concentrou tudo
o que nele havia de habilidade e engenhosidade nesse
objetivo (...). Certamente que há desigualdades, graus
diversos de invenção; porém, em todos os lugares, o estudo
do material etnográfico denota engenhosidade — mesmo num
círculo restrito de ideias e necessidades 24.
Logo, para Vidal e Ratzel, esse poder de ação humana sobre a
Natureza está ligado ao estágio de evolução das sociedades humanas, quer
dizer, aos progressos que elas realizaram na aquisição de conhecimentos
úteis à valorização das riquezas naturais. Sobre isso, Vidal retoma por sua
conta o termo Naturvölker25 para designar sociedades que, menos
desenvolvidas, estão “submetidas a hábitos contraídos sob a influência do
meio” (Vidal de la Blache, 1921:46). Partindo dessas condições primitivas,
certos povos puderam elevar-se a um nível superior de civilização26 e
desfazer-se progressivamente da dependência do meio, aperfeiçoando suas
técnicas de trabalho ou adotando invenções e idéias dos povos com os
quais estão em contato.
Certamente que “o homem não escapa à influência do meio local”
(Vidal de la Blache, 1903:235), admite Vidal. Contudo, ele insiste em
24 . Vidal de la Blache (1921:200-201). Ver também Vidal de la Blache (1898:100;
1904a:311; 1913b:5-6;1898: 99-100).
25 . Vidal de la Blache (1921:9). Ver também Scheibling (1994:15) e Sanguin
(1993:329).
26 . Vidal de la Blache fala em “civilizações rudimentares” e “civilizações
superiores” (1921:199-200 e passim).
16
lembrar que essa influência “é muito difícil de distinguir em nossas
grandes sociedades civilizadas”, dado que elas “são produtos infinitamente
complicados de uma longa acumulação de atividade humana”27. Nessas
sociedades de “civilização superior”, a influência do meio físico local é
muito menor porque a elas são acrescidas “uma gama de influências
advindas de fora que, depois de séculos, não cessaram de enriquecer o
patrimônio das civilizações”28.
A despeito da competência técnica que o homem possa conquistar,
tal como Ratzel, Vidal reconhecia que “permanece e permanecerá sempre
alguma coisa de fixo, de constante que, através de todas as modificações
que nossa época atual multiplica mais do que nunca, representam a
perenidade e o poder das influências do solo”29.
Como podemos constatar, ambos aderem a uma concepção onde
explicam a simultaneidade da dependência e da liberdade humanas face à
Natureza30. Segundo essa concepção, definido como um ser vindo da
Natureza, o Homem não pode e jamais poderá se destacar dessa entidade
que o contém e a quem ele deve a existência. Essa inalterável dependência
deve-se ao fato que o ser humano deve retirar do mundo exterior o que for
necessário para manter-se vivo. Sem esse aporte, ele desaparece. Porém,
essa necessidade natural não o condena a ser uma mera determinação das
condições do meio onde ele evolui. Segundo Vidal e Ratzel, um dos traços
fundamentais do Homem reside em sua vontade de aprimorar sua
capacidade de conferir uma forma útil aos elementos do mundo exterior.
Logo, essa vontade se realizaria porque, dotado de inteligência, o Homem
estaria apto a aperfeiçoar as técnicas que lhe servem para transformar
aqueles elementos em coisas utilizáveis. Assim, aumentando sua
competência técnica, gradualmente o Homem se libertaria das coerções
27 . Vidal de la Blache (1903:236). Assim, para Vidal, a superioridade mundial da
Europa dever-se-ia não somente a sua forte capacidade de inovação mas, sobretudo, aos
contatos por ela mantidos com inúmeras civilizações (1921:78).
28 . Vidal de la Blache (1903:236). Montigny (1992:39) assinala que, considerando
o progresso realizado pelas sociedades mais civilizadas, Vidal reconhecera
(principalmente após 1910) uma relativa autonomia dos fatos sociais em relação às
condições geográficas.
29 . Vidal de la Blache (1904c:343). Ver também Vidal de la Blache (1979:386).
30 . É importante sublinhar que, para Ratzel, a geografia devia explicar como o
Homem, dependente da Natureza, podia ser livre. “Nessa poderosa ação do solo,
manifestada através de todas as fases da história e em todas as esferas da vida presente, há
algo de misterioso que não deixa de angustiar o espírito, pois a aparente liberdade do
Homem parece aniquilar-se” (1900:12).
17
impostas pelo seu meio. Mais apto, ele estaria pronto a tirar vantagem das
condições naturais que outrora havia suportado.
Acedendo progressivamente à pujança técnica, o Homem construiria
sua própria liberdade. Todavia, esta liberdade não o autoriza a subtrair-se à
ordem natural, mas, antes, lhe oferece a possibilidade de tornar-se um
agente ativo da causalidade geral que dinamiza o grande conjunto
natural31. Em outras palavras, a liberdade que o Homem adquire graças à
vontade e à inteligência não é um ato de contradição, mas de realização da
ordem natural. Essa realização é tão mais autêntica e completa à medida
que o poder cada vez maior do Homem venha nela concorrer.
Geografia regional e geografia política convergentes
Os geógrafos supracitados aderem a uma concepção geral comum
segundo a qual a influência das condições ambientais sobre o
estabelecimento humano é mediada pela própria ação humana. A partir
desse postulado, ambos vão elaborar geografias regionais e políticas que,
no plano teórico, são amplamente convergentes. Por conseguinte,
defendem que, subjacente à criação do Estado, a diferenciação regional e a
solidariedade inter-regional dependem de uma dinâmica geográfica
determinada, ao mesmo tempo, pela capacidade técnica das sociedades
humanas, pelas condições naturais nas quais elas evoluem e pela
intensidade das trocas entre uma sociedade e seus vizinhos.
Ratzel aponta que, para compreender o Homem — como toda
espécie viva existente —, é preciso remeter-se constantemente ao seu
Lebensraum, definido como “a superfície da área geográfica requerida para
suportar espécies vivas em seu tamanho populacional atual e seu modo de
vida”32. Partindo desse princípio geral, Ratzel considera que toda
sociedade humana sofre a influência do meio natural no qual se estabelece
(Ratzel, 1897a:97).
De acordo com essa lei fundamental, a Geografia ratzeliana estipula
que a diversidade das condições naturais é um fator determinante na
diferenciação das paisagens humanizadas: “Com incontáveis formas e
31 . Berdoulay (1981a:218-221) apresenta de modo muito claro a versão vidaliana
desse argumento.
32 . Smith (1980:53). Escreve Troll (1949:114): “Por Lebensraum, Ratzel quis dizer
região onde organismos vivos se desenvolvem”. Cf. também Ratzel (1900:13) e Hunter
(1983:48 et passim).
18
configurações, a Terra oferece milhares de possibilidades à vida, mas
também milhares de restrições. Uma vez dada a existência de regiões
naturais e limites naturais, é compreensível que surjam da própria Terra
forças restritivas e coesivas que se oponham à dispersão ilimitada de uma
vida sem formas”33. Quando a humanidade era tecnicamente pouco
desenvolvida, as sociedades humanas não dispunham de poderosos meios
técnicos para estender seus domínios sobre vastos territórios34. Ademais,
em virtude de aptidões técnicas pouco diversificadas, cada grupo se
adaptaria mais facilmente a uma região homogênea que correspondesse
especificamente às suas próprias habilidades (Ratzel, 1897a:156). Por isso,
toda comunidade pouco desenvolvida seria forçada a limitar sua
implantação a uma única região natural (Ratzel, 1897a:156). Segundo o
argumento do geógrafo alemão, esse confinamento geográfico típico de
civilizações primitivas favorece a fragmentação política (Ratzel,
1897a:157). Mais submetidas às condições e obstáculos naturais, as
entidades políticas teriam, como tendência, permanecerem pequenas,
múltiplas e, geralmente, isoladas35.
No entanto, acrescenta Ratzel, a fragmentação político-geográfica se
desvanece a medida em que são tecidas ligações estreitas entre entidades
naturais coexistentes36. De início, a forma das trocas entre as regiões é
33 . Ratzel (1899a:74). Cf. também Ratzel (1897a:96; 1902:73). Hunter (1983:211-
212) apontou o recurso de Ratzel ao conceito de diferenciação espacial mas, ao nosso ver,
não mostrou suficientemente como esse conceito assumiu um papel central no
desenvolvimento teórico do geógrafo alemão.
34 Sobre isso, Ratzel escreveu: “Desde o momento em que a extensão territorial dos
Estados aumentou juntamente com sua cultura, os povos que se encontram em níveis
culturais inferiores são, por conseqüência, dotados de pequenos Estados”. Cf. também
Ratzel (1897a:97; 1896c:352; 1898a:371; 1899b:314).
35 A esse respeito, Ratzel (1894b:289) menciona que “Os povos cujo
desenvolvimento é ainda limitado têm a vantagem de ocupar espaços restritos. Nesse nível
primitivo de desenvolvimento político, onde uma tribo se separa da outra e cada uma
constitui por si mesma um pequeno Estado, florestas e montanhas são obstáculos
dificilmente transponíveis”. Cf. também Ratzel (1898a:371).
36 Hunter (1983:15-16 e 40) explica que os diferentes estabelecimentos dispersos
na superfície da Terra não são, para Ratzel, puros isolados, mas entidades que, embora
distintas, participam inteiramente da unidade orgânica de todo espaço terrestre. É por essa
razão que Ratzel defendia, seguindo Ritter, a ideia de que é impossível compreender uma
região sem levar em conta as relações que ela trava com outras regiões. Cf. também
Ratzel (1899a: 64-65).
19
baseada sobre a própria repartição dos recursos que, destarte, determina
uma divisão regional natural do trabalho (Ratzel, 1897a:97; 1902:66). A
diferenciação espacial do espaço natural — que, no estágio primitivo da
civilização, favorecia a fragmentação do estabelecimento humano —
torna-se, ao contrário (graças ao desenvolvimento das trocas), um fator de
aproximação entre regiões tornadas complementares e entre as populações
que as habitam. Assim, conforme Ratzel, o encontro — e, a rigor, a reunião
— das sociedades humanas tem sua origem na realidade geográfica das
diferenças regionais37.
O encontro realizado graças às trocas dá lugar ao nascimento de um
sentimento nacional no seio de uma massa de indivíduos que, contudo,
provêm de regiões diferentes e podem, além disso, ser de origens étnicas
diferentes38. A despeito de tais distinções, através da experiência de
interdependência regional os indivíduos tomam consciência de seus
interesses comuns (Ratzel, 1897a:4). Assim, logo surge um povo que
constituir-se-ia graças aos laços tecidos quando indivíduos compartilham
um mesmo território, trabalham em conjunto e devem se proteger de
inimigos comuns39.
Paralelamente, a intensificação das trocas contribui para a instalação
de circuitos comerciais e redes de comunicação onde as cidades jogam
papel capital. Cruzamentos de fluxos convergentes e irradiantes, daí em
diante as cidades iriam se impor como placas giratórias onde se organiza a
circulação interregional40. Ademais, as trocas transformariam as condições
37 Anotou Ratzel (1899a:102-103): “Toda a história do mundo é um processo
ininterrupto de diferenciação. Inicialmente, cria-se uma diferença entre o mundo habitado
e o mundo inabitado. Em seguida, no próprio interior do mundo habitado, opera-se uma
diferenciação em virtude da diversidade de zonas, continentes, mares, montanhas,
planícies, estepes, desertos, florestas e milhares de outras formas terrestres que, separadas
ou combinadas, apresentam, cada uma, sua singularidade. Dessa diversidade surgiram
diferenças que, no começo, se desenvolveram separadamente antes de agirem umas sobre
as outras e antes de, assim, transformarem, para melhor ou pior, as disponibilidades
originais do homem”. Cf. também Ratzel (1902:104).
38 Cf. Ratzel (1897a:4, 1899a:66, 1894a, t.1:123) e Sauer (1971:253).
39 Cf. Ratzel (1897a:13; 1899a:83). Para uma apresentação detalhada da definição
de povo em Ratzel, vide Mercier (1990:606-609).
40 A propósito da cidade, Ratzel (1876:1) registrou: “Nas cidades, a vida de um
povo se focaliza, se densifica e se acelera não somente porque nela a vida é mais rica ou
mais eficaz, mas também porque nas cidades a vida concentra sua própria essência,
erguendo testemunhos duráveis que ela transmite à posteridade. As cidades valorizam o
que a vida tem de maior, melhor e mais particular. Quer se trate de ciência, arte, comércio,
20
de organização política das sociedades humanas pois, desencadeando a
constituição de povos e a estruturação da circulação numa escala mais
ampla, elas dinamizaram as forças que concorreram para o reagrupamento
das entidades políticas fragmentadas em grandes unidades41. E é assim, sob
a pressão da evolução das condições do estabelecimento humano, que
apareceria o Estado — definido por Ratzel como uma organização política
que, agindo sob o impulso da consciência nacional de um povo, exerce um
controle sobre o território onde se processa a atividade econômica vital
desse povo42.
Ainda que reunisse várias regiões no seio de uma única entidade
política, uma vez edificado, o Estado não abolia a diferenciação espacial
original do território onde se estendia sua soberania, precisa Ratzel. Pelo
contrário: favorecendo o desenvolvimento das trocas, a unidade política
acentua — modificando-a — a divisão espacial do trabalho e,
consequentemente, a diferenciação regional (Ratzel, 1899a:88). Entretanto,
pela aproximação que ela suscita, essa interdependência regional cria laços
que, em troca, reforçam a coesão interna essencial para a preservação da
entidade estatal (Ratzel, 1897a:162; 1899a:67). Apesar de mantida pela
unificação política, a diferenciação espacial primitiva encontra-se
subsumida por uma ordem superior de organização territorial que, por sua
vez, repousa mais sobre a configuração das redes comunicacionais
religando as partes ao todo do que sobre as características naturais de cada
uma delas (Ratzel, 1897a:402 e seguintes). Ratzel conclui que o Estado
exprime um progresso das sociedades humanas mas, ao mesmo tempo,
riqueza ou ambição, elas reúnem as maiores realizações da cultura humana. Elas sempre
atuaram assim, de modo que a história das grandes cidades encarna a história do mundo”.
Cf. também Ratzel (1988b:3; 1902:85).
41 Cf. Ratzel (1897a:158; 1899a:75) e Bergevin (1989).
42 Frequentemente, Ratzel retoma a feição espiritual do Estado (cf. Smith, 1980:54;
Sauer, 1971:251), que não pode existir sem que um “laço espiritual” solde em conjunto
todos os indivíduos que compõem o povo. Este deve formar uma comunidade cuja força
se deve, em grande parte, à sua “conexão espiritual” (geistige Zusammenhang)
(1899a:67). É nesse sentido que o Estado teria uma “alma” (Seele) e que seria dotado de
“forças mentais” (geistiger Kräfte). De acordo com Hunter (1983:122 e passim), Ratzel
deve essa “concepção da alma do Estado” à sua adesão à filosofia idealista. Ao nosso ver,
essa interpretação não dá conta por inteiro da importância que Ratzel concede à economia
em suas concepções de povo e Estado. Sobre a concepção ratzeliana de Estado, cf.
também Hussy (1988).
21
implica uma maior dependência do Homem frente a uma Natureza cada
vez mais exigida43.
Enfim, notemos que a lógica geográfica subjacente à existência do
Estado permanece sempre, segundo Ratzel, mais fundamentalmente
determinada no longo prazo do que às conjunturas históricas. Assim, um
Estado pode encontrar-se desmembrado durante um período, o que,
entretanto, não impede — insiste ele — que a consciência nacional do
povo possa permanecer uma força viva que tenda à reunificação nacional.
É nesses termos, por exemplo, que ele interpreta a reconstituição dos
Estados italiano e alemão na segunda metade do século XIX 44.
Partindo de uma concepção geral da relação Homem-Natureza, o
pensamento ratzeliano obedece a um encadeamento lógico que conduz,
graças à teoria da diferenciação regional, a uma definição geográfica do
Estado. O mesmo encadeamento é encontrado em Vidal de la Blache.
Para estudar a influência do Homem sobre a Natureza, Vidal propôs
inicialmente o conceito de gênero de vida. A expressão se refere à “ação
metódica e contínua” exercida pelas sociedades humanas “sobre a
fisionomia das regiões”45. Significa como, em cada caso, essa ação se
coaduna às condições naturais para produzir uma forma específica de
estabelecimento humano. Vidal sustenta que:
43 Ratzel (1899a:68) nota que “O Estado extrai sua coerência de seu território. Essa
coerência se fortalece ao longo das eras ao mesmo tempo em que o Estado se enraíza cada
vez mais em seu território. Para um organismo como o Estado, o território não é apenas o
principal fator de coesão, mas também a única testemunha intangível e indestrutível de
sua unidade. No curso da história, o enraizamento do Estado em seu território jamais
falhou — mesmo se, paralelamente, o povo desenvolve sua força intelectual. Ao contrário,
a união do Estado e de seu território torna-se cada vez mais estreita. Mais frouxa no início
quando, no Estado primitivo, alguns homens ocupavam uma extensão relativamente vasta,
ela se torna mais intensa quando, num grande Estado altamente civilizado, uma população
densa vive sobre um território relativamente restrito”. Cf. também Ratzel (1902: 66).
44 Sobre esse ponto: “Mesmo que um território político assim constituído possa ser
desmembrado num dado momento, a ideia de sua grandeza permanece, ainda que possa,
geralmente após vários séculos, sair do domínio dos ideais políticos, tornar-se um projeto
político vivaz e realizar-se novamente — como a história moderna da Alemanha e da
Itália nos ensina” (Ratzel, 1894b:174). Cf. também Ratzel (1897c:449).
45 Vidal de la Blache (1911-1912: 194). Sobre o conceito vidaliano de gênero de
vida, ver notadamente Buttimer (1971:52 e seguintes), Costa Gomes (1993) e Sanguin
(1993:329-330).
22
não é sob a forma de um contrato rigoroso e irrevogável que
são tecidas as relações entre o homem e o solo. As condições
geográficas são bastante maleáveis, deixando um jogo muito
amplo à iniciativa, às preferências e às escolhas do homem. A
natureza não nos oferece o espetáculo de imperiosas
intimações às quais o homem não responderia senão por uma
dócil obediência — pelo contrário. Estudada bem de perto,
ela nos mostra (...) uma gama de aberturas favoráveis pelas
quais o homem pode fazer sentir e prevalecer sua ação 46.
Dessa ação, Vidal retém principalmente a dimensão econômica e
técnica no sentido de que, essencialmente, ele relaciona o gênero de vida
ao conjunto dos meios nos quais uma sociedade se dota para valorizar os
recursos do território ocupado (Sorre, 1948). Segundo o francês, cada
gênero de vida manifesta uma adaptação47 particular a um dado ambiente
natural em função de um certo nível de desenvolvimento técnico,
permitindo uma exploração mais ou menos intensiva e diversificada das
diferentes possibilidades do meio:
Com o auxílio de materiais e elementos tomados da natureza
ambiente, (o Homem) conseguiu não de um só golpe, mas por
uma transmissão hereditária de procedimentos e invenções,
constituir algo de metódico que assegure sua existência,
tornando o meio algo a ser usufruído. Caçador, pescador,
agricultor: tudo isso graças a uma combinação de
instrumentos que são obra e conquista pessoais que ele
acrescenta, por sua própria iniciativa, à criação 48.
46 Vidal de la Blache (1904a:311). Cf. também Vidal de la Blache (1921:21-24 e
passim). Berdoulay (1981a:208 e seguintes) expõe com detalhes a problemática vidaliana
da contingência.
47 Sobre a importância do conceito de adaptação em Vidal de la Blache, ver
Berdoulay e Soubeyran (1991).
48 Vidal de la Blache (1921:115-116). Ver também Vidal de la Blache (1904a:312;
1911-1912; 1913a:297; 1921:106).
23
Embora marcados por certa fixidez49, os gêneros de vida estão
expostos às forças da evolução pois, comumente, “por efeito de novas
circunstâncias, uma sociedade habituada a viver sobre si mesma é posta em
contato com povos, hábitos e necessidades que ela não conhecia. Começa
então um novo ciclo de civilização”50. Para Vidal, no “estágio primitivo”
(Vidal de la Blache, 1913b:6) da evolução humana, o estabelecimento
permanece mais “a expressão natural e quase espontânea das relações
advindas do solo” (Vidal de la Blache, 1979:60). Nesse contexto, a
repartição espacial dos gêneros de vida é fortemente marcada pelas
divisões naturais que recortam a superfície terrestre. Submetidos a uma
intensa pressão do meio natural e ainda inaptos a valorizar uma grande
diversidade de recursos, os grupos humanos estariam, nessas condições,
confinados “ao quadro restrito de uma região natural”51.
Num estágio superior de civilização, a organização espacial da vida
social — sempre segundo o sistema vidaliano — transbordaria os limites
da região natural, pois os “contatos entre regiões vizinhas e contíguas”
(Vidal de la Blache, 1913b:6) favoreceriam a instalação de circuitos de
troca, que são tão ativos quanto essas regiões são diferentes e
49 A propósito da relativa estabilidade dos gêneros de vida, Vidal de la Blache
imputa tal responsabilidade ao peso dos hábitos (1902:22). “Como se faz para que as
condições de existência, contraídas em certos meios, adquiram consistência e fixidez
suficientes para tornarem-se formas de civilização, verdadeiras entidades (...)? É mister
lembrar que a força do hábito joga um grande papel na natureza social do homem. Se em
seu desejo de aperfeiçoamento ele se mostra essencialmente progressista, é sobretudo na
via que ele já traçou, ou seja, no sentido das qualidades técnicas e especiais que os
hábitos, cimentados pela hereditariedade, desenvolveram-se nele. Determinado
instrumento de uma tribo selvagem denota uma engenhosidade cuja aplicação em outros
objetos teria sido o princípio de uma civilização superior. Esse progresso não teve lugar.
De fato, o homem não se deixa desviar facilmente de sua vida tradicional (...). Com o
tempo, ele se fecha na prisão que construiu. Seus hábitos tornam-se ritos, reforçados por
crenças e superstições que ele forjou como apoio”. Por isso, “é freqüente que, entre as
virtualidades geográficas de uma área, algumas, que parecem evidentes, permaneçam
estéreis ou tenham apenas efeitos tardios”. Ver também Vidal de la Blache (1911-
1912:303-304; 1904a:132).
50 Vidal de la Blache (1904a:311). Ver também Vidal de la Blache (1921:204 e passim;
1904a:310).
51 Vidal de la Blache (1979:60). Cf. também Vidal de la Blache (1911-1912: 303-304;
1909: 457-459).
24
complementares. A esse respeito, Vidal segue a pista de Carl Ritter52 e
estima:
não é permitido considerar as diversas partes da Terra como
uma justaposição inanimada, mas como um centro recíproco
de forças atuantes. Assim, o princípio das reações que as
diferentes partes terrestres exercem umas sobre as outras se
situa na natureza física. Daí as análises em que Ritter passa
minuciosamente em revista todos os traços físicos próprios a
imprimir um certo impulso à ação da natureza e do homem.
Toda variedade, toda desigualdade e a fortiori todo contraste,
são móveis de trocas, de relações e penetrações recíprocas.
Eles movimentam todas as forças pelas quais, na natureza, o
equilíbrio tende a se reestabelecer ou pelas quais, na ordem
dos fenômenos humanos, despertou-se um desejo, uma
necessidade acumulada, uma ação solicitada do exterior
(Vidal de la Blache (1896:138).
Em outras palavras, os contatos entre sociedades são, em certa
medida, prefigurados pela divisão do espaço terrestre em diferentes regiões
naturais que, dada a existência de “necessidades mútuas”, requerem as
trocas inter-regionais (Vidal de la Blache, 1902:17). Na sequência, o
crescimento da circulação provocaria uma divisão regional do trabalho,
tornando as regiões dependentes umas das outras53. Além disso, a
generalização das trocas provoca, segundo Vidal, o crescimento das
cidades que, centralizando os circuitos de comunicação, tornam-se —
sobretudo na era industrial — os “nós vitais”54 de uma nova organização
espacial. Para ele, o alcance da industrialização abre “um novo ciclo de
52 Tanto quanto Ratzel, Vidal reivindica uma filiação ritteriana. Os dois aderem ao
princípio de Ritter referente à “harmonia do mundo dos fenômenos” (Ritter, 1974:45).
Segundo tal princípio, todo fenômeno não pode ser interpretado corretamente se não se
leva em conta suas relações com a totalidade que o engloba. Ver notadamente Vidal de la
Blache (1921:5 e seguintes; 1903:228-231) e Ratzel (1899b:324 e passim). Quanto à
influência de Ritter sobre Vidal e Ratzel, ver os comentários de Berdoulay (1981a:213),
Raveneau (1891:342-343), Brunhes (1904:108), Broc (1977:88), Claval (1984:31),
Hartshorne (1939:266-267) e “Friedrich Ratzel” (1904).
53 Essa dependência inter-regional é bem ilustrada por Vidal no Tableau (1979:15
e seguintes [1903]).
54 Retomando o termo do geógrafo inglês Halford Mackinder, Vidal também fala
da “nodalidade” das cidades na organização do território na era industrial. Cf. Vidal de la
Blache (1910:832; 1913b:11)..
25
fenômenos geográficos” (Vidal de la Blache, 1913b:9). Graças ao pujante
impulso industrial,
a enormidade de massas, homens e coisas postas em
movimento, com as ferramentas e os capitais que elas exigem,
não se acomodam mais nos quadros restritos de antigamente.
Resulta daí o crescente papel das cidades ou, mais
exatamente, de algumas grandes cidades. Posto que há a
vantagem de que o crédito, o mercado e as redes de
comunicação estejam ao alcance dos centros de produção, (...)
o principal ponto de concentração é a cidade (Vidal de la
Blache, 1913b:9).
Assim, os
grandes centros industriais engendram relações cuja trama se
estende sem cessar e cobre com malhas cada vez mais
cerradas as regiões circundantes. (...) Se o movimento de
concentração da grande indústria continua no mesmo passo
após um quarto de século, o papel das cidades só aumentará.
Nesse caso, é a cidade que reúne o território. O feixe de
interesses ligado ao redor desses centros de capitais, de
impulsos e de atividades diversas exerce sobre as relações
humanas uma influência que parece cada vez mais imperiosa
(Vidal de la Blache, 1909:460).
Resulta dessa dinâmica que a organização espacial das sociedades
humanas corresponde, daí em diante, mais às áreas de mercado e de
dependência econômica que às divisões naturais55. Segundo Vidal, a
intensificação das trocas transforma profundamente o modo de ocupação
do espaço porque, nesse caso, “o princípio de reagrupamento não está mais
fundado sobre a homogeneidade regional, mas sobre a solidariedade
regional” (Vidal de la Blache, 1913b:6). Essa solidariedade — à qual ele
concede muita importância56 — constituiria o fundamento geográfico da
55 Ver também Vidal de la Blache (1913b:11). Aliás, é por essa razão que Vidal de
la Blache pleiteia (1910 e 1913b) um reordenamento das divisões territoriais francesas.
Muito pequenos, os departamentos não mais respondem à realidade geográfica do país. É
preciso, portanto, reagrupá-los num quadro regional ampliado que considere mais a
importância readquirida das cidades industriais e das redes de comunicação. Cf. também
Le Couédic (1992).
56 Berdoulay (1981a:132) nota que Vidal defende as teses políticas do movimento
solidarista francês, que queria que as diferentes regiões do país fossem dotadas dos
26
estrutura estatal57. Sustenta ele que os Estados “não são entidades fixas”58,
mas sim formas altamente civilizadas (e sempre em movimento) de
organização social e espacial produzidas, ao mesmo tempo, pela história e
pela geografia.
Assim, sobre o processo que conduz à aparição dos Estados, Vidal
declara: “dificilmente se imagina a possibilidade de (suas) formações
senão (...) onde já se encontram importantes fundações de cidades para
fixar, variar e estender as relações” pois, face à “incerteza das relações na
ausência de leis, a cidade as substitui por um princípio de estabilidade e
continuidade”. Por isso, segundo ele, “a cidade é (...) o nó do Estado”
(Vidal de la Blache: 1898:107-108). Na mesma ótica, o Estado repousa
sobre a solidez do sentimento nacional, formado quando a intensidade das
trocas reúne habitantes de diferentes regiões no seio de uma mesma
comunidade. Se o Estado, “essa variedade de elementos”, torna-se uma
força, isso se deve ao fato de que “um poderoso espírito nacional suscita e
perdura de modo a mantê-lo coeso” (Vidal de la Blache, 1899:100).
No Tableau de la géographie de la France, Vidal de la Blache
retoma o mesmo argumento para explicar a unidade política desse país.
Sua unidade não se assenta sobre uma homogeneidade natural qualquer. A
esse respeito, a França é, antes, contrastada — quer seja no plano
geológico, climático, biológico ou mesmo racial (Vidal de la Blache,
1979:7). A despeito da ausência de homogeneidade, todo o conjunto
francês seria marcado “de harmonia” (1979:4), resultado da solidariedade
existente entre as regiões e manifestada pelas trocas estabelecidas e pelas
múltiplas relações59. Graças à forte interdependência regional, a França
“opõe às diversidades que as sitiam e a penetram sua força de assimilação”
(Vidal de la Blache, 1979:40). Edificada secularmente, tal solidariedade,
agindo sobre as consciências, teria levado à formação de um povo e de
poderes adequados para assegurar, melhor e ao mesmo tempo, o desenvolvimento
específico de cada uma das regiões e da Nação como um todo.
57 A concepção de Estado parece se consolidar em Vidal a partir de 1898, quando
ele comenta o livro Politische Geographie de Ratzel. Entretanto, seu interesse pela
geografia política dos Estados remonta, pelo menos, a 1889, data de publicação de seu
livro États et nations de l’Europe autour de la France. Ver Sanguin (1993:129).
58 Vidal de la Blache (1898:108). Ver também Vidal de la Blache (1914:559).
59 Esse aspecto do pensamento vidaliano foi bem evidenciado por Canu (1931),
Guiomar (1986) e Berdoulay (1981a). Sobre a evolução da concepção vidaliana de região
em relação à problemática da divisão administrativa do território francês, ver Sanguin
(1993:141) e Le Couédic (1992).
27
uma pátria que, desde a Idade Média, formaram um Estado político60. De
fato, trocas intensas e constantes teriam tornado os habitantes de todas as
regiões cada vez menos estrangeiros uns diante dos outros. Assim, foi
forjada uma unidade cultural, consolidando pouco a pouco o sentimento de
pertencer a um mesmo povo, que possui e valoriza coletivamente um vasto
território (Vidal de la Blache (1979:51 e passim).
Para Vidal, “a individualidade geográfica” do Estado francês não
pode, portanto, ser deduzida das condições naturais: “Isso não é algo dado
de antemão pela natureza”61. Igualmente, a unidade francesa não seria o
resultado do arbítrio político e histórico. Ela repousaria sobre uma razão
geográfica profunda, de acordo com os próprios princípios que guiam as
relações fundamentais entre o Homem e a Natureza. Notemos de passagem
que Vidal recorre ao mesmo argumento em La France de l’Est para
mostrar porque a Alsácia e a Lorena, a despeito de estarem vinculadas à
Alemanha após o Tratado de Frankfurt de 1871, participam
geograficamente do conjunto francês — ao mesmo tempo em que essas
duas regiões aderem plenamente aos valores patrióticos franceses62.
Conclusão
Ratzel e Vidal de la Blache compartilham a mesma concepção sobre
a relação Homem-Natureza. De início, concordam com o postulado
segundo o qual o Homem estaria submetido à Natureza em razão das
necessidades de sua própria existência física. Fazendo parte do grande todo
natural no qual está organicamente ligado, o Homem, segundo os dois
autores, não seria um elemento menos particularmente dinâmico e
inovador. Assim, para satisfazer suas necessidades, o Homem empregaria
meios técnicos que, dependendo das invenções e das imitações, seriam
aperfeiçoados no curso da história. Por causa desse progresso, o Homem se
tornaria mais capaz na exploração das múltiplas possibilidades oferecidas
pela Natureza e, consequentemente, menos dependente das condições
naturais locais.
60 Sobre esse ponto, Vidal de la Blache retoma o argumento de Michelet (1987).
Ver Canu (1931) sobre as relações entre o Tableau de Vidal e o Tableau de Michelet
(1987).
61 Vidal de la Blache (1979:8). Berdoulay (1988a:74) mostra como o conceito de
individualidade geográfica em Vidal conforma-se à epistemologia neokantiana.
62 Ver também, sobre esse tema, Nicolas-Obadia et al (1988), Nicolas (1988) e
Gallois (1918).
28
Em seguida, tal postulado inspira em ambos geógrafos uma teoria
comum da organização espacial das sociedades. De fato, tanto para Vidal
quanto para Ratzel as formas espaciais da vida humana são moduladas
essencialmente em função do estágio civilizacional alcançado — que
determina uma maior ou menor capacidade técnica de extrair da Natureza
os recursos úteis ao Homem — e das divisões naturais características da
superfície terrestre. No estágio primitivo, quando os meios técnicos ainda
são rudimentares, as divisões naturais se impõem como descontinuidades
que fragmentam o estabelecimento humano em uma multidão de regiões
voltadas sobre si mesmas. No estágio superior, quando as técnicas são
aperfeiçoadas e as trocas se desenvolvem entre as regiões, as divisões
naturais não são mais fatores de confinamento, mas sim de integração
inter-regional. Dinamizadas pela diferenciação natural, as trocas, a partir
daí, contribuem para o estabelecimento de uma nova organização espacial
— ela própria sustentada pela emergência de um sentimento nacional —,
que estrutura ou solidariza várias regiões no seio de um conjunto territorial
estatal.
Como constatamos, em plena comunhão de espírito, Ratzel e Vidal
de la Blache forjaram uma mesma teoria para compreender a gênese e a
dinâmica das entidades regionais. Essa teoria, posto que coerente e
explícita quanto aos seus postulados, os conduziu a uma interpretação
consequente do objeto geográfico. Que essa teoria seja rejeitada ou não,
isso não impede que ela revele toda a pertinência de uma pesquisa sobre a
definição dessa “descontinuidade crítica”63 que diferencia o espaço e que,
além disso, funda o projeto de uma Geografia científica.
A REGIÃO E O ESTADO SEGUNDO FRIEDRICH RATZEL E PAUL
VIDAL DE LA BLACHE
Resumo: Este artigo demonstra que o pensamento geográfico de Friedrich
Ratzel e o de Paul Vidal de la Blache compartilham a mesma concepção
sobre as relações Homem-Natureza. Além disso, evidencia como os dois
autores desenvolveram, a partir dessa base comum, teorias da região e do
Estado amplamente comparáveis.
Palavras-chave: Friedrich Ratzel; Paul Vidal de la Blache; região; Estado;
História da Geografia.
REGION AND STATE FOR FRIEDRICH RATZEL AND PAUL VIDAL
DE LA BLACHE
63 Para retomar a feliz expressão de Hubert (1993).
29
Abstract: This paper demonstrates the great convergence between
geographical conceptions of Paul Vidal de la Blache and Friedrich Ratzel.
It shows how they shared a common vision on several major issues. More
precisely, it stresses that both geographers shared the same general vision
of Man-to-Nature relationship and they end up with very similar theoretical
concepts of region and State.
Keywords: Friedrich Ratzel; Paul Vidal de la Blache; region; State;
History of Geography.
BILIOGRAFIA
BACHELARD, Gaston (1986 [1938]). La formation de l’esprit
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